O Tição devia ser um jovem e valente guerreiro, hercúleo, de
ombros largos e peito em arco, daqueles homens talhados em granito que dariam
dois se fossem partidos ao meio. Era ele um dos soldados que defendiam o
castelo de Trancoso quando os mouros lhe puseram cerco. Em dia melancólico,
olhando ao longe o acampamento dos sitiantes e a presença incomodativa dos
mouros que faziam demorado cerco à praça de Trancoso, o guerreiro magicou sobre
o meio de sair montado no cavalo e correr de encontro ao inimigo, em desafio à
mourama excomungada.
Enquanto a maioria dos do castelo permanecia a dormir, numa
sinfonia de roncos, assobios e arfares de duvidosa partitura, João Tição
resolveu matar o tédio dos dias de clausura forçada. Causava-lhe certo engulho
ver enferrujar na bainha os gumes da sua espada.
Saiu do castelo pela calada da noite, apenas pressentido por
lobos e aves de rapina, catrapus catrapós sobre o cavalo, direitinho ao arraial
dos mouros que, a uma légua do castelo, ferravam o galho em sonhos de princesas
com trajos sumários em harém recheado.
Com uma certa temeridade e outra tanta dose de loucura,
conseguiu ludibriar as sentinelas e, penetrando no acampamento inimigo,
apoderou-se da bandeira do crescente que espanejava sobre uma tenda. Refreando
os ímpetos de espezinhar ali mesmo o guião, montou no cavalo e partiu em
desfilada de regresso ao castelo, levando desfraldada ao vento a sua vitória.
Porém, um mouro excluído da beatitude de sonho embalador,
deu conta da marosca e alertou os dorminhocos, mau grado ter preparado os
ouvidos para ouvir impropérios onde não era mencionado o nome de Alá. Feridos
na soberba, os mouros cavalgaram em perseguição do atrevido. Montados em
fogosos e descansados puro-sangue de raça árabe, depressa diminuíram a
distância que os separava do fugitivo. Este, presumindo as portas a nascente
abertas, para aí fez seguir o cavalo. Contudo, as sentinelas do castelo, vendo
aquele vulto com bandeira moura desfraldada e erguida, não abriram sequer uma
nesga da porta.
Logo que ciente da situação, o cavaleiro deu uma palmada na
garupa do cavalo e gritou:
– Salta, cavalo! Morra o homem, fique a fama!
Morreu o homem e ficou a fama. Cercado por uma chusma de
aviltados guerreiros de turbante e cimitarra, não afrouxou o seu denodo: a
bandeira foi arremessada pelo herói para dentro das muralhas. Com grande
espalhafato de armas e celeuma de vozes, os mouros esquartejaram o Tição.
Uma outra versão do sacrifício final do herói, que nem tira
nem põe valor ao seu feito, diz que o cavaleiro cristão, capacitado da
inutilidade da resistência perante a desproporção numérica, conseguira fugir
para Vale de Mouro, onde foi cercado pelos inimigos, trucidado e queimado em
azeite a ferver.
Texto recolhido do sítio do Município de Trancoso
Iara Silva, Gonçalo Pintassilgo, Gonçalo Ramos, Rodrigo Santos - 7ºB