quinta-feira, 14 de março de 2019

A lenda do João Tição




O Tição devia ser um jovem e valente guerreiro, hercúleo, de ombros largos e peito em arco, daqueles homens talhados em granito que dariam dois se fossem partidos ao meio. Era ele um dos soldados que defendiam o castelo de Trancoso quando os mouros lhe puseram cerco. Em dia melancólico, olhando ao longe o acampamento dos sitiantes e a presença incomodativa dos mouros que faziam demorado cerco à praça de Trancoso, o guerreiro magicou sobre o meio de sair montado no cavalo e correr de encontro ao inimigo, em desafio à mourama excomungada.
Enquanto a maioria dos do castelo permanecia a dormir, numa sinfonia de roncos, assobios e arfares de duvidosa partitura, João Tição resolveu matar o tédio dos dias de clausura forçada. Causava-lhe certo engulho ver enferrujar na bainha os gumes da sua espada.
Saiu do castelo pela calada da noite, apenas pressentido por lobos e aves de rapina, catrapus catrapós sobre o cavalo, direitinho ao arraial dos mouros que, a uma légua do castelo, ferravam o galho em sonhos de princesas com trajos sumários em harém recheado.
Com uma certa temeridade e outra tanta dose de loucura, conseguiu ludibriar as sentinelas e, penetrando no acampamento inimigo, apoderou-se da bandeira do crescente que espanejava sobre uma tenda. Refreando os ímpetos de espezinhar ali mesmo o guião, montou no cavalo e partiu em desfilada de regresso ao castelo, levando desfraldada ao vento a sua vitória.
Porém, um mouro excluído da beatitude de sonho embalador, deu conta da marosca e alertou os dorminhocos, mau grado ter preparado os ouvidos para ouvir impropérios onde não era mencionado o nome de Alá. Feridos na soberba, os mouros cavalgaram em perseguição do atrevido. Montados em fogosos e descansados puro-sangue de raça árabe, depressa diminuíram a distância que os separava do fugitivo. Este, presumindo as portas a nascente abertas, para aí fez seguir o cavalo. Contudo, as sentinelas do castelo, vendo aquele vulto com bandeira moura desfraldada e erguida, não abriram sequer uma nesga da porta.
Logo que ciente da situação, o cavaleiro deu uma palmada na garupa do cavalo e gritou:
– Salta, cavalo! Morra o homem, fique a fama!
Morreu o homem e ficou a fama. Cercado por uma chusma de aviltados guerreiros de turbante e cimitarra, não afrouxou o seu denodo: a bandeira foi arremessada pelo herói para dentro das muralhas. Com grande espalhafato de armas e celeuma de vozes, os mouros esquartejaram o Tição.
Uma outra versão do sacrifício final do herói, que nem tira nem põe valor ao seu feito, diz que o cavaleiro cristão, capacitado da inutilidade da resistência perante a desproporção numérica, conseguira fugir para Vale de Mouro, onde foi cercado pelos inimigos, trucidado e queimado em azeite a ferver.

Texto recolhido do sítio do Município de Trancoso


Iara Silva, Gonçalo Pintassilgo, Gonçalo Ramos, Rodrigo Santos - 7ºB

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